Miguel Ângelo

Quem sou eu

quinta-feira, dezembro 21, 2006


Perdi o luxo da melhor cena.
O banco lá debaixo ainda reluzia as formas mistificadas da noite, sentia-se o gelo das pedras e a presença animal parecia faminta, o cesto que a menina do laço vermelho deixou cair na tarde passada apresenta-se intacto e estupefacto. As guitarras que não existem parecem tocar, as folhas parecem ouvir, os troncos rebaixam o solo com o peso rude e disformado. As linhas da ponte cinzenta queriam mergulhar no rio, são extensas e por mais tensas que sejam não deixam de se molhar, o molho de relva regado jamais enfrentaria a cor da circunstância, o prédio daquela avenida que não vejo está em remodelação constante, e as esquinas da cidade neste momento, parecem arredondar-se.
O velho de olhos pingados e pés regelados banhado no escuro das cores alimenta o seu desespero em cartões e trapos colhidos, a neve estar distante parece a prancha de um sorriso seu, o velho padeceu. Para alem do vidro existe um corpo que ele resiste culpar, rebaixa a revolta e procura o toque favorável.
O olhar parece desperto às batidas naturais, são sequelas de incapacidade. Baixo o queixo num acto de desespero interno, rasgo o estômago com as lágrimas e antes de sangrar…caiu a pasta do cimo do balcão. Ás vezes pintamos vida e os objectos aparentemente banais tornam-se assustadores. Repus a mancha e voltei ao tempo, uma bolsa aveludada sustenta-se nas mãos, o tecido envolve-se nas formas brilhantes e vincadas das potências, abre-se, e o chão parece comer diamantes. Cada pedra um espelho diferente, uma cama de bicos para quem sonha dormir, gélidos.
Voltei ao quarto onde as paredes se pronunciavam, te pronunciavam. Abri a torneira num acto inquieto, um banho de espuma e vapores subtis, um olhar seco ficou colado no tecto. Não oiço o eco das minhas distracções… Na cama o dueto inquieto parecia continuar, as paredes voltavam aos pormenores, o mundo, girava em dois corpos viajantes invasores de lugares inalcançáveis, os lençóis deslizavam de vergonha até o chão permitir, e a minha lembrança, é isso, não passa de lembrança.
Não voltaste e a tua sombra ainda passa no meu espaço, e num espaço tão curto fomos tão ágeis. Trituramos de modo feio as letras que mais ninguém tinha, e o privilegiado acaba por não ser ninguém. Talvez não entenda os diamantes espalhado na minha superfície, ou entenda porque se espalham, tu unia-los tão bem. Podíamos dançar para sempre como naquele dia, as guitarras existiam. Continuamente honrado guardei a tua voz, aquilo que devasta o luxo da minha cena.



Miguel Ângelo