Miguel Ângelo

Quem sou eu

domingo, maio 28, 2006

Antes de Hoje



Eram pequenos os passos, pequenas as pernas, pequenas para chegar onde os outros chegavam. Pequeno era também o rosto, que já em posse de olhos grandes e inocentemente selvagens, chegava à noite coberto de manchas, poeiras cheias de jogos, cheias de ouro criança.
Chegaram as horas da lua, e pelo que me contam nunca gostei que as horas não fossem minhas, parece que já pequeno queria protagonismo, era ciúme impulsivo (digo eu). Esta mesma noite passeava de mão dada com um crescido, era assim que dizia, um crescido que devia rezar para que não lhe fizesse mais perguntas, não me lembro quem era, talvez me lembre que a sua voz era suave e temperada, a pele da mão seria maçã, e a sua explicação do fenómeno estrelas ficou-me sempre. Eram desejos realizados, cada estrela era um desejo pedido e realizado, não me recordo, mas devo ter pedido algum para que houvessem mais estrelas. Que brilho louvável, tomara que fossem desejos.
Neste dia o sol nasceu alentejano, era a casa cheia de quartos e janelas que avistavam aqueles bichos imundos de nome vaca, eu lembro-me que também haviam coelhos, esses sempre soube o nome e alguns cabiam-me na mão, alguns também me deixaram em recordação um desabafo, uma mijadela no calção. Neste dia o sol também custou a morrer, o cão é que parecia frágil, passo a explicar: o sol já se punha e estavam todos rendidos à recolha das batatas, uma maçada portanto, eu era pequeno e essas brincadeiras não me persuadiam, antes persuadissem. Estava eu de volta da carroça de madeira que o cavalo já tinha largado, haviam sacas, restos de palha, e outras sujidades campónias com certeza, o que não era suposto estar por lá era uma caçadeira (sei hoje o nome), daquelas que o meu avô usava para apanhar passarinhos, coitados. Eu em jeitos de brincadeira e mistério lancei as mão aquela cruel criação, lá estava eu a observá-la como se fosse um dos meus brinquedos, sim, porque os meus brinquedos permaneciam nas prateleiras a chamar o pó (hoje dou por mim a vê-los sem uso), e sem me lembrar de como nem porquê, ouviu-se um estrondo e eu fui impulsionado para traz. Agora volto a dizer,” o cão parecia frágil” depois de um ganir pungente, deitava sangue da pata, tu eras-me querido Moceto.
O sol custou a morrer, o Moceto também, mas este momento nunca morreu da minha lembrança. Eu sei que todos interromperam a celebre apanha das batatas, sei também que gritava assustado e que sermões se anexavam ao drama.
Um dia não são vidas, e uns tempos depois já comia melancia, mesmo temendo que a minha pequena barriga pudesse rebentar com o crescimento de novas como dizia o meu avô. Reforçando o pensamento, provavelmente só cresceriam novas melancias se eu engolisse alguma das muitas pintinhas pretas. Eram as fatias gigantes que o meu avô cortava com a sua navalha de madeira tipicamente alentejana que me derretiam o sol acampado no corpo, que pregavam a sede bem longe de mim, frescas tardes de verão passadas na cadeirinha de verga a comer melancia ouvindo historias d´avó Naiça, assim pronunciava eu o Nome Inácia da minha bisavó que trazia sempre com ela uma bagagem de imaginação cheia de cores e animais, eu ainda me lembro do “Toiro Azul”.
O calor não me limitava, pois a praia também me chegava aos olhos, talvez preferisse que não chegasse mais perto que os olhos, as vozes de hoje que puxam passados contam-me que a birra era por não ter meias, os meus pés nas areias, não era boa combinação. Abre-se a boca e correm as lágrimas do célebre crocodilo, assim era o meu descontentamento ao ter que sentir os grãozinhos de areia a perfurarem ou trespassarem-me os pés, pior era depois de molhados, aí queriam-se sossegados na toalha sem pinga de grão colado na pele. Falando em pingas, ainda hoje me pergunto a causa das pingas caídas dos olhos de minha mãe. Uma noite em que o escuro não se calava na minha cama, arrefeço os barulhos que ouvia com o pousar da minha atenção sobre a porta do quarto. Eram raspões de voz, era uma inconstante projecção fonética que me enleava o novelo humanizado, era voz de minha mãe que saltava, talvez o meu coração saltasse com as palavras para deixar esta nódoa, talvez as pingas que ouvia cair-lhe do rosto não fossem salgadas.

Miguel Ângelo

6 comentários:

Anônimo disse...

O texto, leva-me para um cosmos paralelo que nao me faz sentir infantil ao lê-lo.

Acredito que o Moceto ladre de vez em quando nos teus escutos atentos, tambem ladraria nos meus se meu fosse.

Sabes, conforta-me este texto, ainda não percebi bem como nem porquê.

"Antes de Hoje"..foi isso à quantas horas? Eras um menino tão grande já, agora és um pseudo-homem tão grande também.

Os meu mais sinceros parabéns, porque mais uma vez provaste (apesar se ser desnecessário) a tua versatilidade e facilidade em provocar "turbilhões de sentimentos" até no leitor mais prozaico.

BeijoO seu grande A******

Anônimo disse...

Talvez fossem pequenos os passos, pequenas as pernas, talvez o teu corpo fosse pequeno... Mas tu eras sem duvida já grande.
Eras grande de talento, grande de alma.

Foges ao equilibrio, à normalidade, alguem como tu nunca foi, nem nunca será pequeno. Alguem como tu apenas será sempre maior.

Continua a admirar * =)
Beijo

Ti disse...

Há muito,
mesmo muito talento em ti.

Está atento!
Não o prendas, nem deixes prender.
Se precisares
usa músculos para o defender.
Os meus são teus.

Anônimo disse...

.não autorizo......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................não autorizo a que vagas áreas se possuam de mim . levaram o medo e o mundo negro para aí dentro, aí bem dentro,,,o perdão já era inútil e a chuva não parava.era fácil conqistar personalidades discretas, ao mesmo tempo, mantendo-se secreto.os bocados de ti's já não levavam o perdão de um botão descaido na malha das personalidades perdoadas, pois as personalidades não perdoavam. o bloqueio era total. até que. mike is back ;)

E não acredito. Aquilo cheirava-me a poeiras extensas e húmidas


REBEL

Anônimo disse...

"O sol custou a morrer, o Moceto também, mas este momento nunca morreu da minha lembrança."

São quase 12 horas e reparo que o Sol, ainda que tivesse, indubitavelmente, "morrido", está agora no melhor da vida. Também o "Moceto", como lhe chamas, parece só ter "morrido" fisicamente, se bem que é um cão, na sua mais fria acepção.

O melhor da vida não morre!

"Isto é como tudo! Não há de ser nada!"

Anônimo disse...

Gostei. Gostei Muito.

Só não gostei de 2 letras "m" : "...havia(m)coelhos..." "...havia(m) sacas..."